Tuesday, June 27, 2006

Nós, os excêntricos idiotas.

Eu tinha duas opções: apagar as luzes e dormir ou ligar a televisão e assistir ao especial exibido em memória do falecido ator John Travolta. Sim, John Travolta está morto. Os Embalos de Sábado a Noite no canal sete e Olha quem está falando no treze. Resolvi o problema desligando a televisão e escolhendo o que ler. Uma rápida olhada na estante e fiquei desanimada pra burro. Ok, Os Embalos de Sábado a Noite.

Ainda não era tão tarde assim e o par de botas vermelhas num cantinho da sala olhavam para mim e sorriam e eram um número menor e eram da vizinha que havia me pedido para apanhá-las no sapateiro, um pequeníssimo reparo nas solas, imperceptíveis. Adorava aquelas botas e é bem verdade que as vim alisando pelo caminho. Sim, posso usá-las ainda que um número menor e mantê-las intactas. Na cabeça, para amainar os cabelos, um chapéu vermelho, presente da dona das incríveis botas.

Peguei um ônibus, saltei um quarteirão antes da boate e tomei um táxi daqueles grandões e vistosos. Havia calculado bem e o que tinha na carteira pagavam exatos 630 metros percorridos, restando trinta e cinco reais e algumas moedas. Seria um noitada.
Night Fever, era isso que dizia o letreiro neon. Tudo bem, podia ser pior, pensei. Chacoalhar ao som dos setenta até que não seria má idéia. Agradeci a Deus pela Celine Dion estar viva, pelo menos até aquela noite.
Algumas pessoas me olhavam e eu sabia bem o motivo: meus óculos. Eu não queria ter que mencioná-los, mas eles estão sempre adiante e me conduzem e principalmente me fazem enxergar, principal objetivo, o que também permite enxergar o desprezo das pessoas, a hipocrisia e todas aquelas qualidades deploráveis que todo mundo gosta de falar e suas responsabilidades pelo desequilíbrio das relações humanas, Sartre e o inferno são os outros. A verdade é que só combinam quando estou diante do computador ou segurando um livro do Kafka, fora isso, são bem desprezíveis. As lentes de contato gelatinosa estavam fora de questão naquele momento, porque criaram uma pequena crosta de fungos e bactérias, poderia dizer, que havia uma pequena comunidade de estranhas criaturinhas assentadas nelas agora. Cultivava bactérias, assim como aipos hidropônicos na banheira.
Alguns passos, rumo ao centro da boate e uma onda quente de vapor saída dos poros das pessoas suadas, atinge meus óculos tornando a visão embaçada, exatamente quando destampo uma panela fervendo e é nesse instante que me lembro da sopa no fogão. Não apaguei o fogo e provavelmente a água secará e logo logo meu apartamento, meu não, do meu primo, incendiará. Aflição, desespero, horror.
Havia um telefone lá dentro e paguei cinco reais pelas duas ligações que precisei fazer. O que foi uma total devastação nas minhas posses monetárias.
_ Alô, Suzi, oi sou eu.

Suzi, a vizinha.
Uma estranha combinação de piauiense e sergipana beirando os trinta anos, aguda ignorância, exceção quando o assunto é cultura popular, porque isso Suzi é bastante, popular. Nos fins de semana gosta de reunir outros piauienses para ingerirem cevada, porco na brasa e entoar cânticos monossilábicos com forte apelo sexual e demonstra grande habilidade em memorizar coreografias de grupos em evidência. Não nego que é bonita e possui o estranho hábito de roubar a correspondência dos outros vizinhos e roupas na lavanderia. Um tipo de alcoviteira-cleptomaníaca que parece nunca pregar os olhos.
Mesmo a dificuldade em se relacionar com quem possui a capacidade de ser polissilábico, ficamos relativamente amigas e foi entre papos de Mc Serginho e explanações de Nietzche e Sartre que tentamos estabelecer relação amistosa. Difícil, não posso negar, pois alega não usar expressões de “baixo galão”, escreve baiana com h, não consegue enviar e-mails, sonha em ser apresentadora de televisão e passar os fins de semana na Ilha de Caras.
_ Por que você tá gritando?
_ Eu não tô gritando.
_ Tá gritando sim. Você tá onde?
_ Não tô ouvindo nada, Suzi.
_ Alô?
_ Apaga o fogo pra mim. Deixei uma sopa lá e esqueci de apagar o fogo.
Tá sentindo algum cheiro de queimado?
_ Você tá em Queimados?!
_ Não! Deixei uma sopa no fogo. Esqueci de apagar, apaga pra mim.
_ Mas, pagar o quê? Eu não pago mais nada pra você porque ainda me deve aquele dinheiro do cartão de crédito, lembra?
_ Mas, Suzi.....?
_ Você é uma irresponsável, só procura a gente......
Desliguei o telefone. Que maravilha de filha da puta mais surda e ignorante. Liguei para o zelador que se encarregou de checar tudo. Suzi,... tá bom. O nome dela é Suzicléia Aparecida. Com um nome desse havia de ser surda, a cretina.
Relaxei novamente me embalando sábado a noite, que maravilha, é isso aí garota. E porque não? Tirei a porcaria dos óculos, comprimi os olhos para enxergar os vultos e isso me deixou com ar blazé e despojado. Pedi um coquetel de frutas cítricas para aparentar mais descontração. Haveria um desfile e fui me sentar num lugarzinho que permitia ver os modelos bem de frente, todos os detalhes. Não demorou e as galopadas das pernas compridas e lisinhas e cheias de óleo de amêndoa para acentuar as curvas suaves despontavam na passarela. Cada passada, eqüivalia a um ângulo de quase noventa graus. Pensava em geometria quando o segundo modelo entra na passarela. Olhos espremidos, olheiras, cabelos despenteados, pálido andando ritmado em minha direção. Pensei, só quero um segundo disso. Um segundo disso e estava bom. Aquilo tudo jamais se aproximaria de mim a não ser para pedir um favor ou informações. Vá sonhando, perna torta! Vá sonhando. Mas eu tinha Kafka e sabia a exata localização de Butão, no Centro-Sul da Ásia, cordilheira do Himalaia entre a China e a Índia, capital é Timfu, são budistas e falam Zoncá. Levantei a cabeça e orgulhava-me disso.
Outra modelo. Grande satisfação de minha parte ao ver pequenina, magra e tímida celulite ao lado da estreita faixa branca de estria em sua bunda. A senhora ao lado percebeu meu súbito contentamento e comentou, Deslumbrante espetáculo, não? Um sujeito a minha frente esperava ansioso por algum peitinho rebelde e mal criado saltar para fora de algum vestido e a quase ereção estufava a calça dos modelos sonolentos que andavam de um lado para o outro. Me sentia superior, segura e feliz em ser aparentemente comum, ter Kafka na estante e Butão destacado no mapa.
O desfile terminou, as pessoas voltaram a dançar e beber e agora todo mundo se arranjava, até mesmo a tal senhora laqueada do comentário deslumbrante espetáculo, segurava a mão de um dos modelos cuja ereção continuava visível.
Resolvi tomar mais um coquetel de frutas cítricas e remexia sutilmente meus discretos quadris quando dois sujeitos passaram por mim e riram do meu chapéu ou foi dos meus olhos espremidos..... bem, na dúvida, tirei o maldito chapéu e joguei no lixo. Jamais usaria aquela porcaria novamente. A rebeldia capilar foi dominada por um frasco de gel líquido fixador instantâneo que se encontrava no fundo da minha bolsa, aplicado em grandes borrifadas que proporcionava um visual molhadinho. Ao sair do banheiro me sentia mais natural e relaxada, apesar da tensão firmadora capilar.
Fui para a pista de dança e no caminho algumas pisadas nos pés arrefeciam meus dedos comprimidos na bota de salto com bico quadrado. Viro pra cá viro pra lá, ganho uma dose de Malibu no pequeno decote do vestido que absorve tudo rapidamente encaminhando o líquido para o umbigo que permanece empoçado e não perco a calma.
Agora eram os Bee Gees, Stayin´Alive, era isso que diziam e era possível ver um ou outro Tony Manero sacolejando na pista. Enquanto danço só consigo pensar no tal garoto que o Travolta interpretou e que tinha que viver dentro de uma bolha de plástico. Pobre garoto. Imaginei ter que viver dentro de uma bolha de plástico e me angustiava a idéia dos meus aipos comprimidos dentro da banheira. Não sei bem o motivo, mas só pensava nos aipos e na completa porcaria que estava sendo aquilo. Parei de dançar, coloquei o copo em cima de uma mesa e espremendo-me entre os outros para sair da pista de dança, tento mais algumas passadas, piso no pé de alguém, o que não era bom, perco o equilíbrio por causa daquela maldita bota, o que era péssimo e caio em cima de uma porção de batatas-fritas afogadas em maionese formando um balé ao serem lançadas pelos ares.
Cinco minutos depois, estava parada em frente a boate resmungando baixinho entre os dentes pelo fato de ter pago trinta reais pelos dois coquetéis e ter sido um completo desastre. Pelo amor de Deus, eles teriam que valer à pena de alguma maneira. Lá dentro, novamente, Stayin´Alive e eu juro que estava tentando.
Havia quinze centavos na bolsa e que jeito de voltar para casa, senão andando. Tirei as botas apertadas e de repente as trocaria por uma corrida de táxi. Os ônibus não estavam circulando tarde da noite, porque algumas pessoas achavam divertido atear fogo nos motoristas e então esse era o silencioso protesto das empresas exigindo mais segurança nas ruas. Eu tinha quinze centavos e um longo caminho de volta. Grandes questionamentos que resolvi sentando no meio fio. Eu poderia ter vagado de volta até encontrar a morte, o Tocha-Humana, ter vendido as botas ou encontrado o caminho da transubstanciação do dinheiro e transformar os míseros quinze centavos em uma nota de cinqüenta reais. Mas foi como uma centelha divina, que uma pequenina guimba de cigarro em brasa voou de dentro de um carro que passava próximo ao meio fio até a minha testa, me colocando de pé e xingando o motorista. Naquele instante percebi atrás do volante...... Mário Roberto.

Mário e os incríveis mullets
A década de oitenta havia terminado. O Aiatolá Khomeini havia cedido, o muro de Berlim havia cedido, mas Mário e os incríveis mullets não cediam. Seus mullets formavam uma juba no alto da cabeça e um ralo cabelinho de uns quinze centímetros atrás. Eu não conseguia permanecer muitas horas ao lado de Mário, porque há em mim uma compulsão em liquidar tudo o que é ou aparenta ser supérfluo e cortar o ralo cabelinho parecia ser a coisa certa a fazer.
Não tinha amigos, por isso cadastrava-se em associações e freqüentava as reuniões regularmente. Era fã de Jornada nas Estrelas, havia conquistado um importante título num torneio de bocha em Governador Valadares e lia regularmente todos os livros do Asimov.
Era um sujeito que não despertava nenhuma atração, nenhuma vontade em conversar, porque sua gordura era diretamente proporcional ao seu mau humor cotidiano e a necessidade em desprezar e diminuir tudo à sua volta, fazia com que se tornasse maior, mais gordo e mais desprezível. Ainda era virgem, porque para ele era impossível envolver-se fisico-emocionalmente com alguém que desprezasse os princípios básicos da Lei da Robótica.
_ Mário Roberto?
_ Eu te acertei, não foi?
_ Acertou sim, bem aqui no meio.
_ Desculpa, eu não vi você aí.
_ Eu sei. Já tô acostumada. Escuta, tô sem dinheiro, umas coisas aconteceram e..... quinze centavos é tudo que tenho. Pode me dar uma carona?
_ Não sei.
_ Porque não? Você tá indo pra casa, não tá?
_ Tô.
Fui abrindo a porta e me sentando antes que ele arrancasse com o carro.
_ Então Mário, como vão as coisas? Nossa, você caiu do céu, sabia?
Ele me olhava meio desacreditado, meio complacente, meio ele mesmo e deu a partida. Ficamos desconfortavelmente em silêncio por algum tempo até que...
_ Você estava naquela boate?
_ Isso. Resolvi sair um pouco. E você?
_ Hoje é dia de reunião na associação.
_ Associação de quê?
_ Dos jogadores de bocha.
_ Ah..... e vocês falam sobre o quê?
_ Sobre bocha.
Um longo silêncio. Ligou o rádio e novamente ah, ah ah ah stayin´alive, stayin´alive.......
Aquilo era um sinal. Só podia ser. Permaneça vivo. Talvez pelo menos esta noite.
_ John Travolta morreu, né?
_ É, respondi.
_ Você gostava dos musicais?
_ Prefiro a violência.
_ Pulp Fiction, né?
_ É. Mas não posso negar que “O garoto na bolha de plástico” me comoveu. Ele tinha aquela doença rara, não sei o nome, uma coisa bem rara mesmo. Assim como em “Marcas do Destino”.
_ O do garoto com cabeção ruivo?
_ Esse mesmo. Ele também tinha um tipo raro de doença e a cabeça dele cresceu até matá-lo, Deus do céu.
_ Ele e o da bolha dariam bons amigos, ele disse.
_ Talvez.
_ Posso te pedir uma coisa?
_ Claro, Mário.
_ Quando você me encontrar e tudo, não me chame de Mário Roberto, não, tá legal?
_ Tá. Desculpa.
_ Não, tá tudo bem. Só que esse nome não combinam com eles. (apontou para os mullets)
Isso é uma coisa chata para cacete. Penso há muito tempo em mudar meu nome para Fred Olivier. Fred Olivier é bom para cacete, não acha?
_ Ô, sensacional, Fred Olivier.
Silêncio.
_ Porque para cacete? Porque você fala desse jeito?
_ Que jeito?
_ Para cacete. É péssimo.
_ Péssimo para quem?
Péssimo para quem era ótimo. Verdade. Para quem seria péssimo falar para cacete. É bem certo que combinava com os mullets e então fatalmente veio o comentário.
_ Você não pensa em cortá-los algum dia?
_ Prefiro perder uma perna.
Com aquela resposta não dava pra dizer mais nada sobre o assunto e controlava minha estranha compulsão congênita admirando o asfalto e as luzes coloridas espalhadas pela cidade. De repente, amava tanto aquela cidade quente e abafada, deslizando suavemente pelas ruas e as estrelas, eram tantas e tanta beleza que até mesmo o Mário pareceu-me tão sedutor quanto os belos modelos do desfilo. Esta cidade arde por qualquer coisa e agora ele era belo e inteligente e que porcaria de melancolia que me invadia e aquilo não passava e ele até mesmo sorria pra mim e nossa! Ele parecia ser alguém especial e um tanto incompreendido e sua gordura não me pareceu um problema naquele momento. Seus mullets não pareciam um problema naquele momento. Não saber as Leis da Robótica não pareciam ser um problema naquele momento. Mas os dois coquetéis, esses sim eram o problema. Trinta reais. Malditos!
Ele olha para mim com um brilho nos olhos de quem dirá alguma coisa importante. Dá pra perceber uma descoberta em seus olhos, um descortinamento repentino e exuberante e talvez não voltaria sozinha pra casa. Não, não senhor. Eu chegarei de mãos dadas e ninguém perceberá sua gordura e mal humor e em pouco tempo darei um baita jeito nisso tudo.
_ Imunodeficiência severa combinada.
_ Hã?
_ Era isso que ele tinha.
_ Quê você tá falando?
_ O sujeito da bolha. Imunodeficiência severa combinada.
Que nada. Continuava sendo o Mário Roberto e seus incríveis mullets.
_ Não tenho certeza, mas por causa de um gene defeituoso, o organismo é incapaz de produzir linfócitos T, você sabe o que são linfócitos, não? E isso acaba tornando suas vítimas vulneráveis a todo tipo de infecção e quando.......
Ele falava sobre a imunodeficiência severa combinada quando uma tesoura reluziu no chão do carro, entre o meu assento e a porta. Olhei a tesoura, os mullets, aquele monte de banhas tagarelando sem parar com orégano nos dentes e que não sentia por mim atração alguma. Qual a probabilidade daquela tesoura estar ali, já que ele não é a porcaria de um alfaiate e quais as chances que eu tinha de enxergá-las enfiadas e espremidas entre o banco e a porta com a cara cheia de dois coquetéis quinze reais cada? Claro que aquilo aguçou minha estranha compulsão e me deixou muito preocupada.
Ele não me via nem como a porcaria de um linfócito, a porcaria de uma vadia, teria me sentido muito feliz se ele me visse como uma vadia, pelo menos. E não parava de falar, aquela mente obsessiva e paranóia.
_ Então os linfócitos, monócitos e granulócitos que são os principais..........
Calcei as botas, apanhei a tesoura cuidadosamente e permaneci segurando-a e Chegamos, é aqui não é, perguntou. É sim, é aqui, falei, mas estávamos numa rua paralela a minha. Achei melhor assim. Abro a porta e ao colocar metade do corpo pra fora do carro, retorno bruscamente e Fred Olivier, stayin´alive! VRAU, adeus ralo cabelinho e um soco no maxilar me manda pra fora do carro, exatamente como a incandescente guimba voadora, segurando a tesoura numa mão e os mullets na outra. Fred Olivier dá uma pequena ré, posiciona o carro e agora acelera pra cima de mim. Corro quase todo o quarteirão e finalmente pareço ter aprendido a andar com as sensacionais botas vermelhas, meus pés haviam encolhido e tocavam o chão ríspido levemente. Fred Olivier pára de me perseguir quando encontra Nero, um baita cachorro que perambula soltando fogo pelas ventas, um vira-lata e tanto. Suas tripas rompem com as parafernálias no fundo do carro e no dia seguinte ainda era possível ver restos flamejantes do cachorro no asfalto. Pobre Nero.
Soube que dias depois, ele conheceu uma garota, se apaixonaram e se casaram e ele perdeu aquela pança horrorosa e passou a ler alguns livros do Sidney Sheldon e não freqüenta mais nenhuma associação, muito menos pratica bocha, agora faz musculação. Minha impulsividade-congênita-maléfica transformou a vida dele e com certeza ele nunca perceberá isso e sempre se lembrará de mim por ter decapitado seus mullets. Havia algo naquela desgraça de cabelinho que definitivamente o tornava mais inteligente. Mesmo tendo adquirido gosto pelo Sheldon, deixou de ser virgem e gordo e jogador de bocha.
Cheguei em casa com o rosto dolorido e meio inchado a tempo de escolher entre Os Embalos de Sábado Continuam e Olha Quem Está Falando Também. Maravilha. Os Embalos de Sábado Continuam só pra ver o que acontece.
Dei uma expiada nos aipos e resolvi criá-los num grande vaso de barro na área de serviço ao lado do tanque onde batia sol por pelo menos três horas ao dia. Precisavam contemplar o deslumbramento solar para permanecerem vivos e reluzentes.
Na cozinha a panelinha de sopa carbonizada, o teto igualmente carbonizado com uma mancha negra que formava uma figura ainda indecifrável, até que encontrando a posição certa, podia-se ver com clareza Al Pacino em Scarface. O que diria ao meu primo quando ele visse a cara do Al Pacino no teto sobre o fogão? Resolvi esse questionamento me sentando diante da tv e os dois filmes haviam terminado. Trocando de canais, a campainha toca e me levanto deixando sintonizado num documentário sobre vulcões.
“....formado pela solidificação do magma..... constituído por lavas....”
_ Oi Suzi, quê foi? Desculpa ter sido ignorante, posso entrar, perguntou. Tá, entra aí.
"....estabelece ligação entre a superfície da Terra com o magma, no interior do globo.....”
_ E as minhas botas, ficaram boas? Vou sair amanhã com aquele vizinho aqui do 203. Aquele
que você se diz apaixonada, mas não é coisa nenhuma, né verdade? Sabia que vamos a um restaurante mexicano? Já comeu num desses? Dizem que são muito badalados.
No quatro tá passando Xanadu, sabia? Tire dessa porcaria!
Trocou de canal.
_ Olhe! Isso aqui é que é filme. Xanadu! Você sabia que é o predileto do 203?
ZAP.
“..... se desprendem a intervalos, com intensidade variável liberando partículas e gases
magmáticos.....”
_ Porque você gosta tanto dessas porcaria...... oh, meu Deus, seu rosto tá inchado?
_Dentes. Estou com uma infecção nos dentes devido a uma coisa chamada imunodeficiência severa combinada, eu disse entediada. A verdade é que poderia ter dito qualquer idiotice. Essa era a parte boa em tê-la como amiga. E isso pega? Às vezes, respondi.
_ Mas então, porque você gosta tanto dessas porcarias entediantes? Você adora essas coisas estranhas exatamente como esses livros amontoados na estante.....
Ela abriu a janela e agora uma brisa fantasmagórica, ora morna, ora fria nos assombrava.
_ Olhe isso! Que bagunça. Quanto dinheiro desperdiçado, sabia? Eles não vão te levar à nada. Esses livros imprestáveis, você é desequilibrada.
“....fumo, gases, pedras, lavas ....”
_ Você tem toda razão. Eu sou bem desequilibrada porque não acho Xanadu sensacional e não me reuno com a nata do Piauí para conversas amistosas embaladas por músicas fenomenais, comendo porco na brasa e porque, afinal, eu sou a droga de uma porcaria entediante, ora.
“.....lançando-se incandescente na atmosfera, desperta fascínio e horror....”
_Quer saber..... você não me deve mais nada, ela disse.
Levantou, foi ao banheiro e depois a cozinha.
_ Hei, você já viu aquela mancha preta no teto? É a cara do Mario Lanza. Você enlouqueceu, por acaso sabe quem é Mario Lanza? Minha mãe tem todos os discos dele. É claro que você não sabe nada, é o Al Pacino em Scarface, falei, você assistiu Scarface, Suzicléia? Pare de me chame desse jeito. É Suzi. Você é ignorante demais pra ter assistido Scarface e saber quem o Al Pacino é, falei. E você é uma idiota retardada que quer ser descolada e só sabe criar aipos na banheira, como se aipos custassem uma fortuna, sua miserável de fome e me dê logo meu dinheiro, falou. Eu vou te dar sim, vou te pagar em aipos, você vai comer aipos até explodir esse teu cérebro de merda e voar porcarias por todos os lados.
“.... assim Empédocles, que se lança na cratera do vulcão Etna.....”
Caminhou enfurecida rumo à porta, apanhei suas botas e fui atrás.
_ Suzicléia, stayin´alive!

E joguei as botas dentro da lixeira do prédio que por sua vez deslizou até encontrar as maiores imundices com todo o lixo dos outros apartamentos.
_ Você não presta e seu universo é o seu umbigo. É preciso exorcizar seu umbigo, a válvula de escape do ego. ___ Ela professava com o nariz empinado enfurecida, enfiando o dedo na minha cara.
_ Você andou roubando as revistas de auto-ajuda do 402, não foi?
_ Não roubei nada. É claro que não.___ disse sem jeito.
_ Pelo amor de Deus, Suziclécia, você é uma ignorante que não sabe nem escrever exorcizar e sua mãe é uma estúpida caipira que fala “adevogado” e que jamais ouviria Mario Lanza, porque ele é demais pra mente atrofiada dela. E fique sabendo que eu jamais me apaixonaria por um homem que fosse fã de Xanadu. Um tipo de viado que vai dançar de patins a noite toda e pedir pra você enfiar um Taco quente e apimentado no rabo dele.
Saiu correndo rumo às escadas para apanhar as botas, chorando e gritando É preciso exorcizar seu umbigo É preciso exorcizar seu umbigo.
Bati a porta.
“....que nos abrasa o sangue e inflama a alma.....”
Esta cidade arde por qualquer coisa e o calor estava ficando cada vez mais insuportável como todo o resto.
Desliguei a televisão, apaguei as luzes e fui dormir, agora com o rosto inchado, dolorido e o coração em brasa. Permaneça vivo, ainda que por esta noite, pensei.

[conto publicado na antologia " 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira"]